domingo, 22 de junho de 2008

CHUMBAR É UMA VE RGONHA NO LESTE


Céu Neves (texto)
Vasco Neves (foto)
Língua. Compreensão das terminologias torna mais difícil aprender Medicina

Imigrantes dizem que o seu ensino é exigente e com muitos TPC

Uma folha de papel a circular pelas carteiras é algo que nos habituámos a ver nas escolas portuguesas. Não é o hábito das crianças oriundas de países da Europa do Leste. A folha deixa de circular no preciso momento em que o professor inicia a aula. É uma questão de atitude, de cultura, de educação, da importância que se atribui ao ensino? É seguramente diferente e para melhor, dizem os professores portugueses. Os alunos também não se queixam dos nossos educadores, mas pedem uma maior exigência na sala de aula. Um pedido que passa a reivindicação junto dos pais desses mesmos alunos.

Matemática do 3.º ano, mas com o programa de uma escola que fica numa ponta da Europa, no Leste da Europa. Crianças dos oito aos dez anos seguem a matéria em ucraniano como se estivessem no país de origem. É sábado e este é o sexto dia de aulas de alunos que frequentam durante a semana a escola portuguesa. E, assim, prosseguem os estudos nos dois sistemas de ensino. É uma conquista da comunidade ucraniana em Portugal e que está bem expressa no nome da escola Milagre do Mundo. Interrompemos a aula, fazemos perguntas, os alunos atropelam-se para responder. Deixamos duas folhas de papel para escreverem o nome, a idade, há quantos anos aqui estão e o que querem ser quando crescerem. Meia hora depois, as folhas continuam intactas. Faz sentido, quando começamos a perceber estas comunidades. Na aula, é impensável fazer outra coisa que não seja ouvir a professora.

"Ainda não escrevi o meu nome, a professora começou logo a aula", sussurra Daryd Yarova, ucraniana, nove anos, há oito em Portugal.

Um papel a circular pela sala é algo que nos habituámos a ver nas salas de aula e em todos os graus de ensino portugueses. Os imigrantes dizem-nos que não é assim nas escolas da Europa do Leste. "A aula é para aprender. A professora não precisa de levantar a voz. Na escola portuguesa, a professora tem que ralhar para os alunos fazerem as coisas", diz em tom de crítica Bohdan Fedoryshyn, nove anos, há quatro em Portugal. Quer ser futebolistas e engenheiro.

É uma questão de atitude, de cultura, da importância que se atribui à educação. Bem diferentes do comportamento dos nossos alunos. "São realmente diferentes, muito trabalhadores e disciplinados. E sentem vergonha quando têm maus resultados, até porque vão logo para a via profissional. E são os próprios a dizer que os alunos portugueses têm uma atitude de desrespeito para com os professores", explica Isabel Policarpo, professora de Português na Escola 2, 3 de Delfim Santos, em Lisboa. As crianças do Leste estão entre os seus melhores alunos.

Meninos como a Daryd, o Bohdan, a Júlia, o Solomiyo, a Maria, o Mykhoylo, o Aleksandr, a Anastasya, a Marina, a Tetyana e o Dimytro, e que conhecem o sistema de ensino português e ucraniano. Sentem que o ensino "lá [Ucrânia]" é mais difícil, sobretudo nos primeiros níveis. "Lá", não têm mais horas de aulas, mas têm mais trabalhos para casa. Tantos que o tempo de estudo em casa chega a ser superior ao da escola. E tanto elogiam os professores nacionais como os portugueses, com uma ressalva para estes últimos: "Deviam ser mais exigentes!"

Já os professores portugueses não lhes poupam elogios. "O facilitismo mete-lhes confusão, não gostam. Enquanto que para nós é um pouco ao contrário, o nosso ensino está cada vez mais nivelado por baixo", diz Renato Costa, formado em Biologia e professor de Saúde e Socorrismo na Escola Secundária Anselmo de Andrade, em Almada.

Ana Parra dá aulas na Escola Secundária da Amora a alunos que não têm o português como língua materna. Elogia os ucranianos, os moldavos e os russos, que diz terem "capacidades de trabalho invejáveis". E que até as ilustrações dos livros escolares lhes fazem confusão por serem um factor de distracção. É esta capacidade de trabalho que os faz ultrapassar as dificuldade para com a aprendizagem da língua portuguesa.

"Já é português"

Uma forma de estar que não encontra eco entre os portugueses. Pelo menos, na maioria. A tal ponto que os imigrantes do Leste quando vêem os filhos a resvalar para o desleixo, logo afirmam: "Já é português!" É a conclusão do estudo "Entre o Rural e o Urbano: Estratégias de Integração de Famílias de Imigrantes da Europa do Leste", das sociólogas Alexandra Castro, Ana S. Marques, Joana Afonso e Maria José L. Antunes. E sublinham: "No caso de muitos imigrantes, e isto é absolutamente novo no contexto da imigração em Portugal como insuficiente face às expectativas que nela se depositam."

Irina Deuysyuk, 14 anos, Nastia Isasenko, 14, e e Ulyana Varyvoda, 15, dizem o mesmo mas por outras palavras: "Quando viemos, as notas eram baixas por causa da língua. Depois, levantaram e, agora baixaram. Já aprendemos com os vícios dos portugueses. Quem fica mais tempo apanha os vícios e, se regressar à Ucrânia, vai sentir muita diferença." Os vícios que dizem ter aprendido são "estudar pouco ou nada; ir à escola sobretudo para encontrar os colegas; falar na aula".

Expansivas e com ar de estarem sempre prontas para a brincadeira, têm dificuldades em dizer se gostariam de regressar definitivamente ao seu país. Andam no 8.º e 9.º ano na escola portuguesa e no 9.º na escola ucraniana. Os cursos que pretendem seguir dividem-se entre o jornalismo, marketing ou publicidade e designer ou estilista.

A escola " Milagre do Mundo" funciona na Escola 2,3 Pedro Santarém, em Lisboa e segue o programa curricular da Escola Universal de Kiev. Tem uma turma por cada um dos 11 anos exigidos para completar o ensino secundário na Ucrânia (vai passar para 12). É a escola ucraniana em Portugal que tem mais alunos, 130. Vêm de várias concelhos da Grande Lisboa. Todos os sábados, entre as 9.00 e as 17.00.

"Não queremos que a nossa descendência esqueça a língua materna. Estão integrados na escola portuguesa, mas é importante que aprendam a sua cultura", explica Vitaliy Miaailiz, presidente da Associação de Ucranianos de Portugal. A associação é responsável pela maioria das 14 escolas ucranianas no País e que têm o apoio da Embaixada da Ucrânia: três em Lisboa e uma em cada destas cidades: Aveiro, Braga, Gondomar, Paredes, Águeda, Leiria, Faro, Portimão, e, em breve, nas Caldas da Rainha.

Igor Korinnyv, o director da escola, já deixou de se indignar com "a falta de exigência" das escolas portuguesas. "Os alunos, tanto os portugueses como os nossos, andam muito livres. Aqui, os professores não os apertam tanto para melhorar a situação", diz, exemplificando: "Na Ucrânia, se um aluno se atrasa, a administração escolar chama de imediato os pais. Se provoca algum desacato, chamam logo os pais, se não querem estudar, chamam os pais. E os alunos têm medo!"

Medo e vergonha. Medo das represálias em casa. Vergonha, por não cumprirem as metas, estudar e passar de ano. "Mesmo para se trabalhar numa loja é preciso um diploma. Sem diploma, ninguém fala consigo", diz Igor. É professor de Educação Física e chegou a Portugal há sete anos. Trabalhou como serralheiro na construção civil, ofício para o qual tirou um diploma na Ucrânia.

"É para estudar, é para estudar"

"Estranho. Estranho o comportamento dos meus colegas. Pensam que é tudo brincadeira, mas não. Quando é para se divertir, é para se divertir. Quando é para estudar, é para estudar", atira a Georgina Trincu, 11 anos, romena, há três anos em Portugal e a frequentar o 4.º ano na escola portuguesa e na romena. Está na Escola Romena da Associação Fratia (fraternidade) que funciona aos sábados na Escola Secundária de Bocage, em Setúbal. Tem 60 alunos entre os 5 e os 15 anos, da Roménia, Moldávia e Ucrânia.

"Na Roménia, uma colega minha olhou para o relógio e só por isso a professora mandou-a para a rua e disse-lhe: 'Se já estás farta da aula, vais embora!", conta. E continua: "Temos mais regras na Roménia, até na ginástica." Em Portugal só fazem as coisas "quando o professor ralha".

Daniela Madesco, a amiga, expressa o que a surpreende: "Há rapazes e raparigas da minha sala que chumbaram e os pais dizem que não querem saber, que repetem o ano. Na Roménia não é assim... Há um moldavo que era bom aluno, mas foi atrás dos outros que não estudam e, agora, só tem negativas." A Daniela tem dez anos, veio para Portugal há menos de um e frequenta o 4.º ano, tanto na escola portuguesa como romena. Conta outro episódio. "A professora faltou na sexta-feira, mas nós fomos à mesma. Um colega meu faltou. Quando vinha para casa vi que me tinha esquecido das chaves na sala dos professores e voltei à escola. E vi aquele rapaz que tinha faltado com a mochila e só pensei: disse aos pais que veio para a escola e não apareceu!'"

Com a resposta sempre na ponta da língua, a Daniela fala num português irrepreensível e com pronúncia setubalense. "Não sabia falar português no início e sentia-me inferiorizada. Agora, já falo muito bem. Fui a uma visita e estudo e uma professora só percebeu que eu não era portuguesa quando chamou pelo nome." É que antes de vir para Portugal, os pais comparam um dicionário de romeno/português. "Com as palavras como se escrevem e como se lêem."

Quando Bogdan Litkovets chegou a Portugal tinha 5 anos. Na Ucrânia, onde nasceu, nessa idade os meninos já sabem ler. E ele sabia, ucraniano. Por isso a mãe, que era professora de música lá, ensinou-lhe a ler português em casa antes de ele entrar na 1.ª classe num colégio em São Pedro do Estoril, onde a família morava.

"Foi fácil", conta Alla Litkovetz, que se desdobra entre vários trabalhos como mulher a dias, dá aulas de piano e ainda ensina na escola ucraniana de Cascais. Mas teve mau resultado: a professora do filho mandou chamar Alla à escola e passou-lhe um raspanete. Bogdan era o único a saber ler e isso perturbava os colegas. "Uma história surreal".

Foi por histórias como esta, e porque consideravam o ensino português muito brando, apesar do (excelente) percurso escolar de Bogdan, que Alla e o ex-marido resolveram mandar o filho para viver com a avó em Lutsk, cidade ucraniana perto da fronteira com a Polónia e ali fazer o 6.º ano. A mãe acha que valeu a pena a opção. "Queria que ele soubesse o que é a escola , a disciplina, fazer trabalho sério." Isto apesar das fortes pressões dos professores ucranianos que, depois de saberem que a família era emigrante, queria que lhes "pagassem" notas melhores para Bogdan.

E Bogdan, gostou? O miúdo, agora com 12 anos e de volta a Benfica, em Lisboa, onde moram, diz sempre que "sim", de forma evasiva. Mas a sua opinião real sobre as diferenças do ensino, lá e cá, está numa carta que escreveu à mãe e que ela ainda guarda.

Estou sempre a comparar a Ucrânia com Portugal. Em Portugal não há farda como aqui. A farda é bonita, mas eu gosto mais de vestir livremente. Aqui as pizzas são mais pequenas e bebe-se chá, não há coca-cola e há mais variedades de massas e de iogurtes. Em Portugal tinha uma hora para comer, aqui são 10 minutos. E tenho de comer, fazer limpeza na classe, abrir as janelas, limpar os papéis do chão, trazer giz novo.

Gosto mais da escola em Portugal porque é mais fácil. Aqui, em meio ano gastei dois cadernos, em Portugal era meio por ano. Temos de nos levantar cada vez que o professor nos faz uma pergunta. E eles dão-me notas piores do que em Portugal. Eu não percebo. E aí as crianças ajudam-se umas às outras, aqui são avarentos e não ajudam. Agora eu também sou assim. |

Os gémeos Rostyslav e Kostyantyn Romaschuk têm 17 anos e são naturais da Ucrânia. Chegaram ao País com 11 anos, acabando por fixar residência em Sines. A mãe é enfermeira (levou dois anos para concluir o processo de equivalências) e o pai é mecânico. São alunos do 1.º ano de Medicina na Faculdade de Ciências Médicas, em Lisboa, curso onde entraram com uma média obtida no país de origem, 18,9 valores. Também estudaram em Portugal, mas não conseguiam melhor classificação do que 16 (média). Os gémeos sempre estudaram nos dois sistemas de ensino: o português e o ucraniano. "O 7.º ano foi difícil na escola portuguesa, mas as notas melhoraram quando começámos a saber a língua", conta o Rostyslav.

No final de cada ano lectivo, faziam os exames na Ucrânia, até que decidiram frequentar lá o último ano do secundário, onde este nível de ensino tem apenas 11 anos (vai passar a 12), razão pela qual os Romaschuk têm menos idade que a generalidade dos colegas da faculdade. Depois, só tiveram que pedir a equivalência das habilitações. "O ucraniano é a nossa língua materna e era mais fácil estudar na Ucrânia", explicam. Provocação: Não haverá também uma diferença de atitude nas escolas ucranianas, que faz com que os alunos obtenham melhores classificações? "Não acho que exista uma diferença de atitude. O problema é a vontade de estudar", resume Rostyslav. Quase a concluir o 1.º ano de Medicina (estão em exames), limita-se a dizer que "os estudos estão a correr mais ou menos".

É que persiste a dificuldade linguística. "Não conseguimos perceber bem as terminologias. Estudamos a matéria, mas é difícil. Para os nossos colegas portugueses é mais fácil!"

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