sexta-feira, 4 de julho de 2008

PARA UMA GENEALOGIA DO ESTATUTO DA CARREIRA DOCENTE - 2

02-Jul-2008

No estudo de João Freire que temos vindo a comentar aparecem algumas afirmações de interesse num capítulo dedicado ao «diagnóstico» da situação da carreira docente. É aí que se percebe melhor os pressupostos do estudo, apenas sussurrados ou insinuados, e a orientação político-ideológica que o comanda - de forma nunca assumida. Surge então uma passagem assaz significativa: «O conceito de "carreira única" dos docentes abrangendo todas aquelas diversidades de níveis e modalidades de ensino (incluindo o "especial" e o "profissional") é interessante, pela base de tratamento comum que estabelece entre todos estes dependentes do ME e pela não-hierarquização de importância entre os diversos ensinos [...]» (p. 12). Os destaques não são nossos, mas pertencem ao texto original. O que se nos oferece dizer? Em primeiro lugar, é interessante que João Freire considere «interessante» o conceito de carreira única. Mas é um adjectivo pouco entusiástico, como se o autor fizesse uma concessão relutante. O que se compreende perante o que vem a seguir: «[...] Um tratamento jurídico universal tem o risco de esbater as especificidades de cada segmento ou articulação, dificultando a aquisição de identidades e culturas mais particulares e abrindo a porta às ilusões igualitárias e de que "tudo está ao alcance de todos", como se de um "direito natural" se tratasse». É um naco de prosa verdadeiramente prodigioso num estudo que, como dissemos antes, vem paramentado com as vestes da seriedade científica. Abundam nele os pressupostos não fundamentados, nomeadamente o de que uma carreira docente única dificultaria a aquisição de identidades e culturas mais particulares - há aqui um cheirinho retórico à "sociologia das profissões" que o autor cultivou -, como se essa aquisição não estivesse mais dependente de práticas no terreno do que de meros enquadramentos legislativos. A referência às «ilusões igualitárias», vinda de quem vem (um ex-libertário) já foi objecto de suficiente ironia noutros comentários para que nos detenhamos muito nela. Importa antes sublinhar que, tratando-se de uma posição flagrantemente ideológica, ela só não faz um ruído ensurdecedor num estudo com pretensões científicas porque, de facto, estas formam apenas uma cobertura mistificadora para um programa político previamente encomendado. Observe-se ainda como esta ideologia funciona na base da geometria variável ou do critério de "dois pesos e duas medidas". O que, no entender do autor e da equipa ministerial, constitui uma intolerável «ilusão igualitária» - pensar que «tudo está ao alcance de todos» - quando aplicado aos professores, já é, em contrapartida, um desiderato louvável se for aplicado aos alunos, para os quais o "sucesso escolar" tem mesmo de estar «ao alcance de todos».

É também sintomático que, quando João Freire, no seu «diagnóstico», se debruça sobre o que lhe parece ser o «desmantelamento» do grau de exigência na progressão da carreira, à luz do ECD anterior, omita o facto de esse «desmantelamento» nunca ter sido da responsabilidade dos professores e o facto de alguns mecanismos de filtragem e de promoção da excelência, previstos no antigo ECD e no anterior decreto de avaliação do desempenho, nunca terem sido concretizados, uma vez mais por omissão do Ministério.

Mas, como o Paulo igualmente denunciou, é a seguir que irrompe a passagem mais significativa, aquela que, em filigrana, comanda todo o estudo de João Freire. Vale a pena recordá-la na sua integralidade, pois ela condensa, por antecipação, a experiência que hoje estamos a viver: «Na situação actual, pode dizer-se, esquematicamente, que, com base numa progressão quase automática fundada sobre o tempo de serviço, é esperável e normal que quase todos os docentes atinjam o topo da carreira. Segundo dados oficiais de 2005, 53% dos docentes vinculados encontrar-se-iam no 8.º, 9.º e 10.º escalões e (segundo um alto responsável do ME) alguns dos que já se situam neste último patamar remuneratório terão agora à sua frente uma expectativa de não-progressão da ordem de 14 anos, até atingirem o limite de idade de 65 anos para se retirarem, segundo as novas normas de aposentação. Consideramos indesejável esta situação, quer para os docentes (embora sentida diferenciadamente), quer para a despesa pública paga pelo contribuinte (as remunerações daqueles 3 escalões mais elevados representam um encargo anual superior a 2.371 milhões de euros, ou seja, 63% do total de despesas com este pessoal), quer ainda para a lógica de equilíbrio e desenvolvimento harmonioso que deveriam estar presentes na carreira profissional dos docentes» (p. 13). De novo, os destaques correspondem ao original. É um trecho que quase dispensa comentários, tão transparente é o intuito que o move. Limitar-nos-emos a observar a reiteração da falácia argumentativa que consiste em invocar o "interesse" do contribuinte, omitindo o facto de os professores (ou os funcionários públicos em geral) serem também contribuintes, com a particularidade de receberem os seus vencimentos já convenientemente "aliviados" dos montantes destinados aos impostos. As alíneas que se seguem a esta passagem são, de resto, pura ideologia: João Freire "normatiza" o que entende por «princípio da igualdade de oportunidades» que, segundo ele, «não se confunde com acessos indiscriminados ou ilimitados», mas se concretiza «pela procura de objectividade e isenção dos mecanismos de acesso a lugares que, por definição, são mais exigentes e escassos» (p. 14). Encontramo-nos aqui no cerne da argumentação de que o Ministério usou e abusou no momento de proceder à legitimação pública das suas medidas contra os professores. Note-se que, para João Freire justificar a sua interpretação do «princípio da igualdade de oportunidades», teve previamente de construir a ideia de escassez dos lugares de topo da carreira docente. Acontece que esta não é, de todo, uma premissa auto-evidente, mas algo que resultou, tão-só, de uma opção política pautada por critérios economicistas e não por critérios de exigência. Os lugares de topo foram, assim, reconstruídos como um bem escasso a que só se pode aceder por «mérito individual». Um bem, aliás, duplamente escasso, não só pelo conteúdo funcional que lhe foi atribuído - os lugares de professores titulares estão supostamente reservados para as tarefas mais exigentes - como também pela imposição de quotas de acesso. Trata-se de uma ficção, como ficámos a saber pela forma grosseira e arbitrária com que foram "seleccionados" os primeiros professores titulares. E só numa lógica, já pré-determinada, que distingue entre professores "de primeira" e professores "de segunda", semelhante ficção é capaz de respirar. Em contraste, se concebermos cada professor como um profissional que, no acto de ensinar, diariamente se confronta com situações que não o distinguem de qualquer outro colega de ofício, a assimetria criada entre «titulares» e «ordinários» deixa de fazer sentido. Mas sabem o que tem piada nos raciocínios de João Freire? É que ele, no seu diagnóstico, fornece um argumento que vem ao encontro do que acabámos de defender. Afirma o autor, a páginas tantas (p. 12) que «a missão essencial dos docentes - neste campo da Educação geral que vai desde o pré-primário até ao fim do ensino secundário - é, em primeira análise, a de ensinar e transmitir conhecimentos formalizados, acumulados e sedimentados por uma larga experiência histórica e cultural, e trabalhados pelos especialistas das ciências pedagógicas e da educação. Neste sentido, e sem prejuízo das particularidades de cada grau de ensino [...], pode considerar-se que a função docente não muda de natureza ao longo do percurso profissional de cada agente de ensino. Ser professor é, primariamente, ensinar durante toda a vida» (os destaques estão no original). Pois é, João Freire tem toda a razão. Ser professor é mesmo isso. Só que isto coloca um "pequeno" problema ao seu raciocínio. É que, se a função docente não muda de natureza ao longo do percurso profissional de cada professor, dificilmente se pode inferir daí a necessidade de introduzir «diferenciações, claramente perceptíveis, [...] nomeadamente sob a forma de "categorias profissionais"». A única maneira de João Freire dar a volta a este non sequitur é mobilizar a converseta ideológica sobre as «ilusões igualitárias», que fica sempre muito bem num ex-anarca convertido às maravilhas da retórica simplex neoliberal, mas que casa mal com o rigor do discurso argumentativo.

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